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Empréstimo sem juros? Conheça o sistema financeiro islâmico

Célio Ribeiro


Resumo
No país da Copa do Mundo, lei religiosa islâmica adotada por alguns bancos, a Sharia, determina que o dinheiro não pode gerar dinheiro e, por isso, proíbe a cobrança de juros. Especialista explica como as instituições financeiras lucram e fala sobre as regras seguidas na hora de investir

Daqui exatamente um mês, o Brasil estreia na Copa do Mundo de 2022. E às vésperas do início do torneio, as obras para a realização do campeonato estão praticamente concluídas, tanto na capital do Qatar, Doha, quanto nas outras quatro cidades que vão receber os jogos (algumas obras da Copa de 2014, no Brasil, não ficaram prontas até hoje). Tanta eficiência vem do trabalho ininterrupto dos operários (até mesmo durante noites e madrugadas) e, é claro, da enxurrada de dinheiro investido.


A Copa de 2022 já é considerada a mais cara da história, com um gasto de US$ 220 bilhões, segundo a Fifa. A segunda colocada neste ranking é justamente a Copa de 2014, com um gasto de US$ 15 bilhões. Apesar do Qatar lucrar, e muito, com a venda de petróleo e gás natural e, por isso, ter "bala na agulha" para gastar, é válido pensar que parte desses recursos vem de empréstimos, que devem estar rendendo milhões em juros para os bancos locais, correto? Na verdade, não.


Empréstimo sem juros

"Quando a esmola é demais, o santo desconfia". Por isso, empréstimos sem juros parecem algum desses golpes que vivem aparecendo na internet e dos quais o Inset sempre fala. Mas, na verdade, esta prática é comum em muitos países do Oriente Médio e faz parte de um ordenamento jurídico conhecido como sistema financeiro muçulmano ou islâmico.


A economista e professora de MBAs da FGV (Fundação Getúlio Vargas), Carla Beni, explica que o sistema segue um rigoroso padrão de regras e princípios éticos baseados na Sharia, que é o corpo da lei religiosa islâmica (direito islâmico). A Sharia, por sua vez, é baseada no Alcorão, livro sagrado do Islã que, para os muçulmanos, traz a palavra de Deus revelada ao profeta Maomé. A Sharia também tem como fonte o Hadith, registro de falas e ensinamentos proferidos por Maomé.


"A aplicação dos ensinamentos de Maomé nas situações concretas forma a jurisprudência islâmica (Fiqh). Alguns países, como Irã, Paquistão e Arábia Saudita, têm a Sharia como base do sistema judiciário. Outros fazem sua própria interpretação. Na maior parte dos países muçulmanos a Sharia é um código de conduta individual com pouca ou nenhuma relação com o sistema judiciário."


Há mais de 1.400 anos, Maomé teria definido que dinheiro não pode gerar mais dinheiro e que os recursos deveriam ser canalizados para usos produtivos. Aqui temos a origem da não-cobrança de juros: os muçulmanos não podem pagar nem cobrar juros, já que o dinheiro não é visto como mercadoria e o ato é considerado usura.


Mas como os bancos islâmicos lucram?

Os bancos islâmicos faturam e não é pouco. Segundo a Global Finance, portal de notícias do mundo financeiro, os 10 maiores bancos islâmicos do mundo possuíam, em 2020, quase US$ 480 bilhões em ativos. Um deles, o Qatar Islamic Bank, é uma das maiores instituições financeiras do país-sede da Copa do Mundo de 2022.


Nesse sistema, o empréstimo não é visto como uma "compra de dinheiro", mas como uma parceria justa e sem riscos desnecessários a serem tomados pelas duas partes. A especialista conta que incerteza e especulações não são admitidas nessas transações. Carla explica como se dá a fonte de lucro das instituições financeiras islâmicas.


"Há um compartilhamento de resultados, como se o empréstimo fosse, na verdade, um contrato de sociedade. O dinheiro emprestado tem que estar relacionado a um bem tangível, precisa ter lastro. Por exemplo: se o valor de um imóvel hipotecado cai, o valor da hipoteca também cai. Lucro e prejuízo são compartilhados."


A economista conta que os acordos precisam ser verificados por corpo de religiosos e estudiosos. Os investimentos não podem ser destinados à atividades proibidas (haram). Entre elas, estão a fabricação de bebidas alcoólicas, carne de porco, armas, jogos de azar, pornografia e financiamento de produções de entretenimento (cinema e TV). Caso aprovado, há a emissão do Certificate of Sharia Compliance.


A especialista destaca a complexidade do sistema financeiro islâmico e alerta: "Não podemos reduzir finanças muçulmanas apenas à 'não-cobrança de juros'."


Finanças islâmicas no Brasil?

Após entender como funciona o sistema financeiro islâmico e descobrir que ele não é apenas um "banco sem juros", fica a dúvida: quem não é muçulmano pode ser cliente dessas instituições? O Brasil pode ter uma delas algum dia.


A economista e professora de MBAs da FGV, Carla Beni, traz o exemplo de um amigo que mora no Qatar e solicitou um empréstimo em um banco local. Segundo ela, há a cobrança taxa básica de juros do Qatar, que hoje é 4,5% ao ano, mais a taxa fixa do banco, de 3,5%. No total, a empresa estaria pagando 8% ao ano. Ou seja, há a cobrança de juros, mas bem abaixo do praticado em outros países (como o Brasil).


Falando em Brasil, o sistema financeiro islâmico é discutido por aqui desde 2019, entre os membros do Grupo Parlamentar Brasil - Países Árabes. Em dezembro de 2021, o tema foi debatido em uma audiência pública da Comissão de Assuntos Econômicos do Congresso. Beni explica que, apesar de o sistema ser adotado por instituições que estão em países ocidentais, como o Reino Unido, a instituição dela aqui no Brasil dependeria de mudanças na legislação fiscal, o que é difícil de acontecer.


"Haveria a criação de regras paralelas, como a cobrança de imposto diferenciado. Essas mudanças contariam com a participação do Banco Central, da Receita Federal e do Congresso, e precisariam de uma legislação diferenciada. É muito complexo viabilizar isso no Brasil."


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